Boa
Vista — Há pouco mais de três anos,
venezuelanos cruzam, diariamente, a fronteira de Pacaraima, divisa entre
Roraima e a Venezuela, em busca de refúgio. São milhares. Com pouco dinheiro no
bolso e, muitas vezes, deixando alguém querido para trás, querem recomeçar a
vida no Brasil — e a cidade mais próxima é a capital de Roraima, Boa Vista, a
215 km da fronteira. De onde vêm, a diarreia voltou a ser uma doença perigosa,
comida se tornou um privilégio e ter diploma de ensino superior passou a ser
irrelevante. Chegam ao país e ocupam as ruas, dormem em praças, procuram por
prédios inabitados. A cama é o papelão, o banho é na bica — e só se der. “Mas
ainda assim nossa vida está melhor do que era lá. Tem comida”, dizem, como em
um consenso. Buscam por empregos e alimentam a esperança de conseguirem
reconquistar a dignidade que lhes foi tirada.
Venezuelanos
embarcam em avião da FAB na segunda etapa de interiorização promovida pelas
autoridades brasileiras na semana passada (foto:
Gabriela Vinhal/CB/D.A Press)
A
onda migratória na região teve início em 2015, quando um grupo de venezuelanos
indígenas pediu refúgio no país. Em 2016, o processo começou a ficar mais
intenso, principalmente entre os não indígenas. Em 2017, a quantidade deles no
país já havia praticamente quadruplicado, segundo os registros de entrada da
Polícia Federal (PF). Entre 2017 e 2018, foram notificados 92.656 venezuelanos
no país. Do total, 48.024 ainda permaneciam em território nacional. Os dados
foram levantados com a ajuda do controle migratório na fronteira e a tendência,
para a PF, é que o processo continue crescendo.
No
país há quatro meses, Mariellis Soteldo, de 32 anos, deixou os três filhos e o
marido na Venezuela e veio ao Brasil com apenas R$ 30 no bolso. Queria conhecer
as possibilidades que teriam e juntar mais um dinheiro para voltar e buscar a
família. Andou a pé por três dias desde Pacaraima, quando um brasileiro lhe
ofereceu carona. Os pés estavam inchados, o estômago doía de fome. Assim que se
instalou na praça, procurou por um bico e fez uma faxina em uma loja do
comércio local. Recebeu menos de R$ 100 e decidiu voltar para buscar o caçula e
o marido, que estavam doentes. “Pensei que meu filho morreria nos braços. Mas
assim que pisamos em solo brasileiro, ele tomou dois soros emergenciais e
começou a responder. Estava desacordado”, lembra, emocionada. Os outros dois
filhos ficaram com a avó e chegaram ao Brasil em março deste ano.
O
filho mais novo de Mariellis, Abrahan, de 4 anos, não fala. Tem atraso mental e
cognitivo por ter nascido prematuro. Ela o levou a uma consulta no Hospital da
Criança de Boa Vista, mas não conseguiu dar continuidade aos exames na busca
pelo diagnóstico. Recentemente, foi deslocada pelo governo a Manaus, em um
programa de interiorização para refugiados no país. Lá, espera conseguir
emprego e tratamento para o caçula. Vive o sonho de poder dar, novamente,
dignidade aos filhos: “Tento, todos os dias, ser forte por eles. Quero que
consigamos um emprego, que os meninos voltem a estudar e que tenhamos novamente
uma casa. Depois disso, conseguimos viver com o básico, o mínimo. O restante do
que sobrar, se sobrar, quero ajudar a minha família que ainda está lá (na
Venezuela)”.
A
acolhida dos refugiados no estado travou uma briga entre os governos estadual,
municipal e federal. Ao passo que os líderes locais pedem pelo fechamento da
fronteira, o presidente Michel Temer afirma que o país não vai virar as costas
para os vizinhos. A fim de tentar amenizar a situação para os moradores da
cidade que tinha apenas 330 mil habitantes, o governo federal passou a
intensificar ações e fornecer recursos, como reforço ao estado. Recentemente,
no último 12 de março, a Medida Provisória 820, que dispõe sobre regras
emergenciais de acolhimento, foi editada e um crédito extraordinário de R$ 190
milhões foi aberto ao Ministério da Defesa — responsável pela coordenação
operacional das ações em Roraima. O general Eduardo Pazuello é quem chefia esse
grupo, composto por 16 órgãos federais e agências da Organização das Nações Unidas
(ONU).
Acolhimento
Atualmente,
há seis abrigos em Boa Vista, cada um com média de 500 vagas, e um em
Pacaraima. Cerca de 3,5 mil venezuelanos estão acolhidos. No entanto, há quase
7 mil deles na cidade — 1,3 mil em situação de rua, desassistidos pelo governo
e vulneráveis. O Correio esteve no abrigo Jardim Floresta, que recebe famílias
e pessoas em situação de vulnerabilidade. O local é amplo, com militares na
entrada fazendo a segurança. No portão, é possível ver mais de 20 venezuelanos
em fila, na tentativa de sair da rua e conseguir uma vaga no centro.
Assim
que os novos moradores entram no local, devem participar de um serviço de
triagem com identificação, vacinas e, se necessário, atendimento médico básico.
Depois são direcionados à barraca em que ficarão hospedados — todas as
acomodações são doadas pela ONU. Cada pessoa recebe um kit individual de
higiene, entregue pelos agentes da organização, com um sabonete, um creme
dental, uma escova de dente, um shampoo, uma toalha, um cobertor e um kit de
prato, copo e colher. Aos maiores de 12 anos são dados, também, um desodorante
e um aparador de barba. As famílias, por sua vez, recebem papel higiênico,
sabão em pó, vassoura, esponja de aço, detergente, esponja, desinfetante, água
sanitária e saco de lixo. A ideia é que cada uma organize e limpe a área onde
fica.
No
país desde agosto do ano passado, Scarlen Villalba, 45 anos, completou um mês
no abrigo. Ela, o marido, os dois filhos, a nora, que está grávida, e o neto
dividem uma cabana. “É ótima essa casa, cada um tem um colchão e pode dormir
com conforto. Ganhamos o kit de higiene, podemos lavar nossas roupas e ainda
temos um ventilador para os dias de mais calor”, comemora. Ficaram no país os
outros dois filhos de Scarlen, que trabalhava como cozinheira e faxineira na
Venezuela. “Não quero sair de Boa Vista enquanto não conseguir buscar meus
meninos. Mas, para isso, preciso conseguir um emprego, e sinto que os
brasileiros não estão abertos para isso”, desabafa.
Insalubre
Em
outro abrigo, no Tancredo Neves, Lusbraska Hernandez, de 33 anos, morou na rua
por três meses e havia chegado ao centro de acolhimento há três dias. Ela, o
marido deficiente e os dois filhos caminharam desde a fronteira até o centro de
Boa Vista. A venezuelana, que trabalhava de costureira, veio ao Brasil para dar
uma vida digna à família e, principalmente, à mãe, que tem câncer terminal e
não consegue tratamento no país onde vive. “Já juntei R$ 100, que para os
brasileiros parece pouco, mas para nós não é. Mandei esse dinheiro para ajudar
na quimioterapia. Sonho que tudo vai dar certo e vivo o pesadelo de perdê-la e
não poder ir a seu enterro.”
A
médica da Marinha Marília Negreiros, que atende há poucas semanas nos abrigos
da região, relata que entre as doenças mais comuns entre os refugiados estão as
infecciosas, as parasitoses, as escabioses e as de pele. “Eles chegam em
condições insalubres de vida, carentes de tudo. São acolhidos e damos esse
suporte de saúde. Em menos de uma semana, já presenciei a suspeita de ao menos
três casos de malária.”
O
governo federal enviou a Boa Vista o reforço de 12 equipes do programa Mais
Médicos, além de ter firmado um convênio com o Corpo de Bombeiros, no
valor de R$ 4,5 milhões, para mapeamento da situação de saúde. Foram doados 73
equipamentos e mobiliários para estruturar dois leitos de estabilização no
hospital, no valor de R$ 324 mil, e empenhados R$ 563,3 mil para o Fundo
Estadual de Saúde.
Fonte:https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/05/06/interna-brasil,678654/venezuelanos-no-brasil.shtml
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