quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Aylan (ou a foto do menino curdo)

Estampada nos jornais de todo o mundo, hoje uma foto fez a humanidade chorar. A morte de Aylan, refugiado que tentava entrar com sua família na Europa, ficou gravada em nossas vidas, assim como outras fotos de tragédias humanitárias em outros tempos. A morte de Aylan pode ser apenas mais uma sensibilização passageira, ou um marco para refletirmos algumas questões do mundo contemporâneo, capitalista, individualista.

A foto do menino curdo Aylan comoveu o mundo, através do poder da imagem midiática, do espetáculo do sofrimento do outro. A sua morte foi registrada em uma foto cheia de elementos que constroem uma imagem impactante.

(Talvez, se o outro fosse um haitiano negro baleado em terras brasileiras, ou de um indígena assassinado por ruralistas, a comoção fosse menor). 

A foto do menino curdo nos tocou, pois a ideia da infância ainda nos produz o belo, a sensibilidade, a crença de que queremos construir um futuro melhor para as novas gerações; assim, visualizar a criança inocente, deitada na beira do mar, abala tragicamente a imagem doce desta fase da vida, (Mas não ficamos tão tocados quando é um garoto negro morto pela polícia na periferia – este até mereceu morrer pois ele deveria ser bandido mesmo; ou quando a gente desiste da infância e da adolescência, querendo reduzir a maioridade penal, defendendo o trabalho infantil, desacreditando os meninos e meninas pobres por “não aproveitarem suas oportunidades”, pois se os pobres fossem “esforçados” conseguiriam mudar de vida – a família de Aylan se esforçou para conseguir algo melhor em um mundo cruel e desumano. Não, a resposta não é unicamente esforço pessoal, mas política coletiva.)

A foto de Aylan talvez tenha trazido reflexão sobre o drama dos refugiados para muita gente pela primeira vez. Hoje, segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), são cerca de 19,5 milhões de pessoas que perambulam pelo mundo, em uma grande diáspora, o pior quadro desde a Segunda Guerra Mundial. Somente em 2015, nas águas do mar Mediterrâneo, 2,6 mil pessoas morreram afogadas. A Europa debate diariamente sobre o enorme fluxo de estrangeiros tentando entrar no continente. No Brasil, o número de refugiados dobrou nos últimos 5 anos. A tragédia humanitária que se abate sobre o mundo, principalmente por guerras, nos traz a necessidade de repensar o respeito à dignidade humana acima do capital, acima de alguns valores intimamente ligados à nossa cultura capitalista contemporânea.
(Tomara que a foto de Aylan nos lembre que direitos humanos servem para lutar pela vida digna de todos nós, que os direitos humanos são inalienáveis, e pensar por um momento que eles não são necessários é quase um ato criminoso.)
A foto do menino curdo talvez tenha feito muita gente ouvir falar pela primeira vez nos curdos, a maior etnia sem Estado no mundo (cerca de 30 milhões de pessoas). Espalhados por diversos países do Oriente Médio, reivindicam sua independência. Há alguns anos, sofrem nas mãos do Estado Islâmico, e lutam contra este grupo. A família de Aylan é de Kobani, uma das cidades onde a batalha contra o Estado Islâmico é diária e violenta.
A foto do menino curdo, então, nos obriga a pensar no Estado Islâmico, radical, fundamentalista, terrorista. Ele não se formou do nada, espontaneamente. Surge no Iraque, mas boa parte dos seus recursos vieram dos países ocidentais, que apoiaram a oposição ao presidente sírio Bashar al-Assad (em 2012, os EUA aprovaram mais de 80 milhões de dólares para os opositores de Assad). Enquanto os curdos guerreiam com fuzis e metralhadoras, o Estado Islâmico tem armas de última geração fabricadas no Ocidente.
(Se a foto de Aylan nos aterroriza, tomara que nos faça pensar no fundamentalismo crescente no Brasil, religioso e politico; tomara que nos mobilize por menos armas no mundo, e não para que todos tenhamos uma arma em casa; tomara que nos faça visualizar o terror nos discursos cheios de ódio cada vez mais propagados pelos fascistas de nosso país; que nos impeça de votar na chamada “bancada da bala” - a foto de Aylan nos comprova que produzir e adquirir armamento é problema, não solução.)

A foto de Aylan, menino curdo, soma-se às fotos e lembranças de outros milhões de meninos e meninas, homens e mulheres, mortos diariamente pela opressão de um pensamento conservador e reacionário, um pensamento violento, covarde e cruel, que fere a dignidade, que mata a humanidade, mas, hipocritamente, depois chora por ela.

A foto de Aylan, menino curdo,...

Autor: Tiago P. Klein.

(Os dados sobre refugiados são da matéria “De braços abertos”, de André Barrocal, na revista Carta Capital n. 864, de 26 de agosto de 2015; os dados sobre os curdos e o Estado Islâmico, da matéria “A nação sem país”, de Fania Rodrigues, na revista Caros Amigos n. 220, de julho de 2015 – que também tem uma interessante matéria sobre refugiados)
 
Fonte: http://pedagogicoesocial.blogspot.com.br/2015/09/aylan-ou-foto-do-menino-curdo.html

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